Ideologia da repressão - João Baptista Herkenhoff

Em Destaque
Por -
0
O país redemocratizou-se mas um substrato cultural autoritário teima em resistir ao processo democratizador.

A partir de um crime ocorrido num determinado momento, na cidade de Vitória, teço considerações que ultrapassam o tempo e o espaço, isto é, valem para sempre e para qualquer parte do território brasileiro.

O país redemocratizou-se há mais de vinte anos. Uma Constituição foi votada com intensa participação popular, como nunca havia acontecido no transcurso de nossa História. A Assembleia Constituinte, que votou a Constituição de 1988, abriu-se à escuta dos anseios da cidadania. Dessa escuta resultaram emendas populares assinadas por cerca de quinze milhões de eleitores. As vozes da rua pleitearam Justiça Social, Educação, Democracia, Direitos Humanos. Não houve emendas populares pedindo o retrocesso institucional, o endurecimento da repressão, a supressão de garantias. Chegava-se ao fim do túnel e a comunidade nacional queria respirar Liberdade. Entretanto, em contraste com a esperança de um novo ciclo histórico, bolsões de pensamento e comportamento ditatorial permaneceram em muitas instituições e espaços sociais, inclusive na Justiça, na Polícia, em órgãos de Governo, na Universidade, nos meios de comunicação.



É esse substrato cultural autoritário que está atrás de atos de violência praticados por autoridades públicas contra o cidadão. É esse substrato cultural que faz com que a Polícia, e até mesmo a Justiça, presumam a culpa e determinem que a inocência seja provada. É esse substrato que admite que, na persecução do crime, vidas de inocentes possam ser sacrificadas.

Faço estas reflexões a propósito de um lamentável episódio pretérito – a morte do advogado Geraldo Gomes de Paula, nas dependências de uma Delegacia de Polícia de Vitória. Esse digníssimo advogado foi vítima da brutalidade quando se encontrava no estrito cumprimento do dever. Seu falecimento foi chorado, não apenas por sua família, mas também por milhares de pessoas que testemunharam sua retidão moral e dignidade de espírito.

À luz da ideologia da repressão não se entende o papel do advogado criminal, que é visto como “inimigo público”. Não se compreende que o advogado é indispensável à Justiça e que sem respeito ao advogado a Democracia naufraga. O advogado não defende o crime, mas sim o acusado de um crime ou até mesmo o culpado. Julgamento criminal que se faça sem a presença independente e atuante do advogado não é julgamento, mas arremedo de julgamento, farsa.

A violência urbana que, com razão, amedronta o povo, encoraja a ideologia da repressão. Segundo essa ideologia, tropas especializadas, com atiradores de elite, estão autorizadas a matar, uma vez que se encontram no desempenho de papel estratégico para preservar a segurança pública. O resultado disso é uma ilusória segurança.

O trágico episódio que vitimou o advogado Geraldo Gomes de Paula, não obstante seja um episódio distante no tempo, deve ser motivo para uma discussão ampla sobre o papel da Polícia, debate esse a ser travado no seio da sociedade e dentro da corporação policial. Outros fatos semelhantes ocorridos alhures podem servir ao mesmo propósito, isto é, discutir princípios e teses à luz de situações concretas. Dentro do organismo policial, milhares de vozes discordam das atitudes autoritárias, ao arrepio da lei, e lutam bravamente, através da palavra e da ação, para que tenhamos no país uma Polícia democrática.

João Baptista Herkenhoff, 75 anos, magistrado aposentado, é professor da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo e palestrante Brasil afora. Autor do livro Justiça, direito do povo (Thex Editora, Rio).
Tags:

Postar um comentário

0Comentários

1. O Blog em Destaque reserva-se o direito de não publicar ou apagar acusações insultuosas, mensagens com palavrões, comentários por ele considerados em desacordo com os assuntos tratados no blog, bem como todas as mensagens de SPAM.

Postar um comentário (0)